Arquivo do dia: abril 10, 2011

Mensagem de Quaresma

Amados irmãos e irmãs!

A Quaresma, que nos conduz à celebração da Santa Páscoa, é para a Igreja um tempo litúrgico muito precioso e importante, em vista do qual me sinto feliz por dirigir uma palavra específica para que seja vivido com o devido empenho. Enquanto olha para o encontro definitivo com o seu Esposo na Páscoa eterna, a Comunidade eclesial, assídua na oração e na caridade laboriosa, intensifica o seu caminho de purificação no espírito, para haurir com mais abundância do Misté- rio da redenção a vida nova em Cristo Senhor (cf. Prefácio I de Quares- ma).

Esta mesma vida já nos foi transmitida no dia do nosso Batismo, quando, «ten- do-nos tornado partícipes da morte e ressurreição de Cristo» iniciou para nós «a aventura jubilosa e exaltante do discípulo» (Homilia na Festa do Baptismo do Senhor, 10 de Janeiro de 2010). São Paulo, nas suas Cartas, insiste repetidas ve- zes sobre a singular comunhão com o Filho de Deus realizada neste lavacro. O fa- to que na maioria dos casos o Batismo se recebe quando somos crianças põe em evidência que se trata de um dom de Deus: ninguém merece a vida eterna com as próprias forças. A misericórdia de Deus, que lava do pecado e permite viver na própria existência «os mesmos sentimentos de Jesus Cristo» (Fl 2, 5), é comuni-cada gratuitamente ao homem.

O Apóstolo dos gentios, na Carta aos Filipenses, expressa o sentido da transfor- mação que se realiza com a participação na morte e ressurreição de Cristo, in-dicando a meta: que assim eu possa «conhecê-Lo, a Ele, à força da sua Ressurreição e à comunhão nos Seus sofrimentos, configurando-me à Sua morte, para ver se posso chegar à ressurreição dos mortos» (Fl 3, 1011). O Batismo, portanto, não é um rito do passado, mas o encontro com Cristo que informa toda a existência do batizado,doa-lhe a vida divina e chama-o a uma conversão sincera, iniciada e apoiada pela Graça, que o leve a alcançar a estatura adulta de Cristo.

Um vínculo particular liga o Batismo com a Quaresma como momento favorável para experimentar a Graça que salva. Os Padres do Concílio Vaticano II convi- daram todos os Pastores da Igreja a utilizar «mais abundantemente os elementos batismais próprios da liturgia quaresmal»( Sacrosanctum Concilium, 109). De fato, desde sempre a Igreja associa a Vigília Pascal à celebração do Batismo: nes- te Sacramento realiza-se aquele grande mistério pelo qual o homem morre para o pecado, é tornado partícipe da vida nova em Cristo Ressuscitado e recebe o mesmo Espírito de Deus que ressuscitou Jesus dos mortos (cf. Rm 8, 11). Este dom gratuito deve ser reavivado sempre em cada um de nós e a Quaresma oferece-nos um percurso análogo ao catecume- nato, que para os cristãos da Igreja antiga, assim como também para os catecú- menos de hoje, é uma escola insubstituível de fé e de vida cristã: deveras eles vi- vem o Batismo como um ato decisivo para toda a sua existência.

Para empreender seriamente o caminho rumo à Páscoa e nos prepararmos para celebrar a Ressurreição do Senhor – a festa mais jubilosa e solene de todo o Ano litúrgico – o que pode haver de mais adequado do que deixar-nos con- duzir pela Palavra de Deus? Por isso a Igreja,  nos  textos  evangélicos  dos domingos de Quaresma, guia-nos para um encontro particularmente intenso com o Senhor, fazendo-nos repercorrer as etapas do caminho da iniciação cristã: para os catecúmenos, na perspectiva de receber o Sacramento do renascimento, para quem é batizado, em vista de novos e decisivos passos no seguimento de Cristo e na doação total a Ele.

O primeiro domingo do itinerário quaresmal evidencia a nossa condição do homens nesta terra. O combate vitorioso contra as tentações, que dá iní- cio à missão de Jesus, é um convite a tomar consciência da própria fra- gilidade para acolher a Graça que liberta do pecado e infunde nova força em Cristo, caminho, verdade e vida (Ordo Initiationis Christianae Adultorum, n. 25). É uma clara chamada a recordar como a fé cristã implica, a exemplo de Jesus e em união com Ele, uma luta «contra os dominadores deste mundo tenebroso» (Ef 6, 12), no qual o diabo é ativo e não se cansa, nem sequer hoje, de tentar o homem que deseja aproximar-se do Senhor: Cristo disso sai vitorioso, para abrir também o nosso coração à esperança e guiar-nos na vitória às seduções do mal.

No segundo domingo, o Evangelho da Transfiguração do Senhor põe di- ante dos nossos olhos a glória de Cristo,que antecipa a ressurreição e que anun- cia a divinização do homem. A comunidade cristã toma consciência de ser conduzida, como os apóstolos Pedro, Tiago e João, «em particular, a um alto monte» (Mt 17, 1), para acolher de novo em Cristo, como filhos no Filho, o dom da Graça de Deus: «Este é o Meu Filho muito amado: n’Ele pus todo o Meu enle- vo. Escutai-O» (v. 5). É o convite a distanciar-se dos boatos da vida quotidiana para se imergir na presença de Deus: Ele quer transmitir-nos, todos os di- as, uma Palavra que penetra nas profundezas do nosso espírito, on- de discerne o bem e o mal (cf. Hb 4, 12) e reforça a vontade de se- guir o Senhor.

pedido de Jesus à Samaritana: «Dá-Me de beber» (Jo 4, 7), que é propos- to na liturgia do terceiro domingo, exprime a paixão de Deus por todos os ho- mens e quer suscitar no nosso coração o desejo do dom da «água a jorrar para a vida eterna» : é o dom do espírito Santo, que faz dos cristãos «verda- deiros adoradores» capazes de rezar ao Pai «em espírito e verdade». Só esta água pode extinguir a nossa sede do bem, da verdade e da beleza! Só esta água, que nos foi doada pelo Filho, irriga os desertos da alma inquieta e insatis- feita, «enquanto não repousar em Deus», segundo as célebres palavras de Santo Agostinho.

No quarto domingo, o cego de nascença apresenta Cristo como luz do mundo. O Evangelho interpela cada um de nós:«Tu crês no Filho do Homem?». «Creio, Senhor» (Jo 9, 35.38), afirma com alegria o cego de nascença, fazendo-se voz de todos os crentes. O milagre da cura é o sinal que Cristo, junta- mente com a vista, quer abrir o nosso olhar interior, para que a nossa fé se torne cada vez mais profunda e possamos reconhecer n’Ele o nosso único Salvador. Ele ilumina todas as obscuridades da vida e leva o ho- mem a viver como «filho da luz».

Quando, no quinto domingo, nos é proclamada a ressurreição de Lázaro, so- mos postos diante do último mistério da nossa existência: «Eu sou a ressur- reição e a vida… Crês tu isto?» (Jo 11, 25-26). Para a comunidade cristã é o momento de depor com sinceridade, juntamente com Marta, toda a esperança em Jesus de Nazaré: «Sim, Senhor, creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo». A comunhão com Cristo nesta vida prepara-nos para superar o limite da morte, para viver sem fim n’Ele.A fé na res- surreição dos mortos e a esperança da vida eterna abrem o nosso olhar para o sentido derradeiro da nossa existência: Deus criou o homem para a ressurreição e para a vida, e esta verdade doa a dimensão autêntica e definitiva à história dos homens, à sua existência pessoal e ao seu viver social, à cultura, à política, à eco- nomia. Privado da luz da fé todo o universo acaba por se fechar num sepulcro sem futuro, sem esperança.

O percurso quaresmal encontra o seu cumprimento no Tríduo Pascal (Quinta-feira Santa, a Sexta-feira da paixão, a vigília do Sábado de Aleluia), particular- mente na Grande Vigília na Noite Santa: renovando as promessas batis- mais, reafirmamos que Cristo é o Senhor da nossa vida, daquela vida que Deus nos comunicou quando renascemos «da água e do Espírito Santo», e reconfir- mamos o nosso firme compromisso em corresponder à ação da Graça para ser- mos seus discípulos.

O nosso imergir-nos na morte e ressurreição de Cristo através do Sacramento do Batismo, estimula-nos todos os dias a libertar o nosso coração das coi- sas materiais, de um vínculo egoísta com a «terra», que nos empo- brece e nos impede de estar disponíveis e abertos a Deus e ao próxi- mo. Em Cristo, Deus revelou-se como Amor (cf 1 Jo 4, 7-10). A Cruz de Cristo, a «palavra da Cruz» manifesta o poder salvífico de Deus (cf. 1 Cor 1, 18), que se doa para elevar o homem e dar-lhe a salvação: amor na sua forma mais radical (cf. Enc. Deus caritas est, 12). Através das práticas tradicionais do jejum, da es- mola e da oração, expressões do empenho de conversão, a Quaresma educa para viver de modo cada vez mais radical o amor de Cristo. O Jejum, que pode ter diversas motivações, adquire para o cristão um significado profun- damente religioso: tornando mais pobre a nossa mesa aprendemos a superar o egoísmo para viver na lógica da doação e do amor; supor- tando as privações de algumas coisas –e não só do supérfluo– apren- demos a desviar o olhar do nosso «eu», para descobrir Alguém ao nosso lado e reconhecer Deus nos rostos de tantos irmãos nossos. Para o cristão o jejum nada tem de intimista, mas abre em maior medida para Deus e para as necessidades dos homens, e faz com que o amor a Deus seja tam- bém amor ao próximo (cf. Mc 12, 31).

No nosso caminho encontramo-nos perante a tentação do ter, da avidez do di- nheiro, que insidia a primazia de Deus na nossa vida. A cupidez da posse provoca violência, prevaricação e morte: por isso a Igreja, especialmente no tempo qua- resmal, convida à prática da esmola, ou seja, à capacidade de partilha. A ido- latria dos bens, ao contrário, não só afasta do outro, mas despoja o homem, tor- na-o infeliz, engana-o, ilude-o sem realizar aquilo que promete, porque coloca as coisas materiais no lugar de Deus, única fonte da vida. Como compreender a bondade paterna de Deus se o coração está cheio de si e dos próprios projetos, com os quais nos iludimos de poder garantir o futuro? A tentação é a de pensar, como o rico da parábola: «Alma, tens muitos bens em de- pósito para muitos anos…». «Insensato! Nesta mesma noite, pedir-te-ão a tua al-ma…» (Lc 12, 19-20). A prática da esmola é uma chamada à primazia de Deus e à atenção para com o próximo, para redescobrir o nosso Pai bom e receber a sua misericórdia.

Em todo o período quaresmal, a Igreja oferece-nos com particular abundância a Palavra de Deus. Meditando-a e interiorizando-a para a viver quotidianamen- te, aprendemos uma forma preciosa e insubstituível de oração, porque a escuta atenta de Deus, que continua a falar ao nosso coração, alimenta o caminho de fé que iniciámos no dia do Batismo. A oração permite-nos também adquirir uma nova concepção do tempo: de fato, sem a perspectiva da eternidade e da trans- cendência ele cadencia simplesmente os nossos passos rumo a um horizonte que não tem futuro. Ao contrário, na oração encontramos tempo para Deus, para co- nhecer que «as suas palavras não passarão» (cf. Mc13, 31), para entrar naquela comunhão íntima com Ele «que ninguém nos poderá tirar» (cf. Jo 16, 22) e que nos abre à esperança que não desilude, à vida eterna.

Em síntese, o itinerário quaresmal, no qual somos convidados a contemplar o Mistério da Cruz, é «fazer-se conformes com a morte de Cristo» (Fl 3, 10), para realizar uma conversão profunda da nossa vida: deixar-se transformar pela ação do Espírito Santo, como São Paulo no caminho de Damas- co; orientar com decisão a nossa existência segundo a vontade de Deus; libertar-nos do nosso egoísmo, superando o instinto de domí- nio sobre os outros e abrindo-nos à caridade de Cristo. O período quaresmal é momento favorável para reconhecer a nossa debilida- de, acolher, com uma sincera revisão de vida, a Graça renovadora do Sacramento da Penitência e caminhar com decisão para Cristo.

Queridos irmãos e irmãs, mediante o encontro pessoal com o nosso Redentor e através do jejum, da esmola e da oração, o caminho de conversão rumo à Páscoa leva-nos a redescobrir o nosso Batismo. Renovemos nesta Quaresma o acolhi- mento da Graça que Deus nos concedeu naquele momento, para que ilumine e guie todas as nossas ações. Tudo o que o Sacramento significa e realiza, somos chamados a vivê-lo todos os dias num seguimento de Cristo cada vez mais gene- roso e autêntico. Neste nosso itinerário, confiemo-nos à Virgem Maria, que ge- rou o Verbo de Deus na fé e na carne, para nos imergir como ela na morte e res- surreição do seu Filho Jesus e ter a vida eterna.

Escrito por: Papa Bento XVI

Deus é Misericórdia, mas também é Justiça

Da misericórdia de Deus muito se fala, mas pouco de Sua justiça. Abusa-se da misericórdia divina, para, assim, se continuar numa vida pecaminosa, apenas fazendo um propósito: Mais para o fim da vida farei uma confissão e Deus me perdoará. Mas, e se o fim da vida for amanhã…? O inferno está cheio de bons propósitos, disse um santo. É o próprio demônio que nos engana, incutindo-nos uma falsa idéia de misericórdia para ofendermos ainda mais a Deus e tornarmo-nos indignos de Seu perdão.

Santo Afonso Maria de Ligório, Doutor da Igreja, Príncipe dos Moralistas, ad- verte-nos a respeito desse grande perigo para a nossa vida espiritual, num ser- mão no qual demonstra que abusar da misericórdia de Deus é desprezar sua bon- dade.

Abusar da Misericórdia de Deus é desprezar sua Bondade

Pode ser que haja no meio de vós, meus irmãos, alguém que se encontre com a alma carregada de pecados e que — longe de pensar em se livrar deles pela confi- ssão e penitência — não cessa de cometer novos pecados, se sobrecarregando ainda mais . Este, certamente, abusa da misericórdia divina; pois, a que fim nos- so Deus tão bom deixa que este pecador viva senão para que se converta e, por conseqüência, escape da desgraça de perder a alma?

Ele mereceu as severas censuras que o Apóstolo dirigiu ao povo judeu impeni- tente: “Porventura desprezas as riquezas da bondade, da paciência e da longami- nidade de Deus? Ignoras que Sua bondade te convida à penitência? Mas que na tua dureza e coração impenitente, acumulas para ti um tesouro de ira no dia da ira e da manifestação do justo juízo de Deus” (Rom II, 4-5).Eu quero vos afastar, meus irmãos, desse funesto abuso, e vos preservar da desgraça de cair na morte eterna do inferno. A esse propósito, chamo vossa atenção para a seguinte verda- de: Quando uma alma abusa da misericórdia divina, a misericórdia divina está bem próxima de a abandonar…

Misericórdia e justiça divinas: infinitas

Santo Agostinho observa que, para enganar os homens, o demônio emprega ora o desespero, ora a confiança.Após o pecado, o demônio nos mostra o rigor da justiça de Deus para que des- confiemos de Sua misericórdia. Entretanto, an- tes do pecado, o demônio nos coloca diante dos olhos a grande misericórdia de Deus, a fim de que o receio dos castigos, devidos aos pecados, não nos impeça de satisfazer nossas paixões. …Essa misericórdia sobre a qual vós cantais para poder pecar, dizei-me, quem vo-la prometeu? Não Deus, certamente, mas o de- mônio, obstinado em vos perder. Cuidado!, diz São João Crisóstomo, de dar ou- vidos a este monstro infernal que vos promete a misericórdia celeste…“Deus é cheio de misericórdia, eu pecarei e em seguida confessar-me-ei”. Eis aí a ilusão, ou antes, a armadilha que o demônio usa para arrastar tantas almas para o in- ferno! …

Nosso Senhor, aparecendo um dia a Santa Brígida, queixou-Se: “Eu sou justo e misericordioso, mas os pecadores não querem ver senão minha misericórdia” (Ego sum justus et misericors; peccatores tantum misericordem me existimant. – Rev. 1. I. c. 5). “Não duvideis, diz São Basílio, que Deus é mise- ricordioso, mas saibamos que Ele também é justo, e estejamos bem atentos para não considerar apenas uma metade de Deus”. Uma vez que Deus é justo, é im- possível que os ingratos escapem do castigo… Misericórida! Misericórdia! Sim, mas para aquele que teme a Deus, e não para aquele que abusa da paciência di- vina.

Autor: Marcus Moreira Lassance Pimenta
Fonte: Veritatis Splendor